Hoje é o dia dos moinhos. E neste dia quisemos recuperar um texto de Joaquim Marques Pereira Marques, escrito em agosto de 2016 e publicado no nosso jornal em setembro desse ano.
Os Moinhos da Queiva
No dia 25 de Agosto do corrente ano, pelas 09h30, voltei à Queiva, (Campo, Valongo), para rever o que restava dos seus moinhos. Não pretendia realizar este simples trabalho, sem revisitar, novamente, este recôndito espaço, cheio de beleza agreste, quase secreto ou desconhecido da maioria dos Valonguenses.
No início da década de oitenta, procedendo, pessoalmente, a um levantamento dos moinhos do rio Ferreira, encontrei-os (moinhos da Queiva) desativados. Mantinham-se ainda de pé, garbosos, respirando saúde. Mais tarde, em 1985, fotografei-os. Numa das fotos, escrevi no seu verso: Moinhos da Queiva, devotados a um longo silêncio. Um estava já destelhado e um outro sofrera intrusões clandestinas que o afetara. O telhado estava arruinado.
Quando lá voltei nos anos noventa, o seu estado de saúde era já doentio. Voltei mais tarde. Encontrei-os num estado de perfeita ruina total, como se tivessem sofrido algum ataque aéreo. Hoje, são um mero caco! Envergonhados, cobrem os seus farrapos, em perfeita ruina, com a vegetação silvestre, espreitando, temerosos, através do xisto e do granito, a simbiose perfeita da sua arquitetura rústica e tradicional, que respeitava os materiais locais, utilizados na sua construção.
Abandonados e esquecidos, foram presa fácil para a ação inclemente e impiedosa dos agentes naturais, acelerada pelo saque a que foram sujeitos: Telhas, xisto, lousas, madeiras, mós, etc. Tudo desapareceu! A sua arquitetura foi-se desfigurando e tombaram.
Muito do património do nosso país, tal como a nossa floresta, necessita de medidas urgentes de prevenção.
Os moinhos da Queiva pertenciam à tipologia dos moinhos de água de roda horizontal de rodízio fixo à péla, dos mais numerosos existentes no nosso país.
Do ponto de vista molinológico, Valongo detém uma vasta área para o estudo dos seus moinhos tradicionais (etnotecnologia), bem como os seus aspetos técnicos, sociais e culturais.
Não foi fácil, na altura, identificar os moinhos e contabilizar as suas mós. A Queiva, no auge da moagem de cereais, era um lugar movimentado. O seu acesso era feito por um caminho de terra batida, (hoje, topónimos: Rua da Azenha e Trav. da Azenha) por onde circulavam, as pessoas ligadas à laboração e negócio da farinação, bem como bestas de carga.
Após a desativação dos moinhos, a Queiva tornou-se num ermo, sem viva alma. Um local recôndito, quase secreto, do desconhecimento de muitos valonguenses. Não se via viva alma, neste espaço, de beleza agreste e profunda, bafejado pelas águas do Ferreira. Um bálsamo para o espírito.
Interrogo-me, se os moleiros, na época áurea, no meio da sua azáfama, dia e noite, teriam sequer tempo para se aperceberem da grandeza da paisagem que os envolvia e da imponência rochosa que o rio contempla na sua passagem. O rio, ao deslizar sobre as bancadas rochosas, como que em reverência, alarga o seu caudal, tornando-se espumoso e branco. Em seguida, eleva a sua voz, ao encolher-se para atravessar esganado a garganta, entre o Alto do Castelo e a Serra de Pias (antiga Serra do Raio) até normalizar o seu curso, para jusante, junto aos moinhos do Cuco, do outro lado do promontório.
Hoje, grupos de montanhistas, alpinistas, e apreciadores das atividades verticais, praticam rapel nas Fragas do Alto do Castelo. No seu eucaliptal, são vários os grupos de pessoas, que promovem acampamentos, convívios e outros eventos, e aproveitam para usufruir deste espaço, afastado do bulício das cidades. Tão acanhado como imponente, com uma relação tão íntima com a natureza silvestre, nas margens do Ferreira, onde alguns se banham nas suas águas.
Nos anos oitenta, subi e desci algumas vezes, o caminho de acesso a estes moinhos, Na Azenha, bati a algumas portas e abordei pessoas, sobretudo mais velhas, para obter informações sobre os moinhos. Algumas pessoas, são, por natureza, desconfiadas. Se levamos papéis, ainda mais. Quando o cérebro não esquece deturpa. Por isso, é preciso filtrar as informações e testemunhos, confirmando-os com outras pessoas, para que os resultados sejam os mais fidedignos possíveis.
Recordo, aquando do levantamento possível dos moinhos do Ferreira. Um trabalho tão apaixonante como ingrato, caracterizar os moinhos. Isolados, junto às margens do rio, sem qualquer identificação, sem ninguém por perto, para obter informações, tentava descortinar por entre terrenos de cultivo, uma habitação, uma pessoa, com quem dialogar, numa primeira abordagem. Os lavradores detestam intrusos, sobretudo quem invade a sua propriedade privada. Através de fotos voltava na semana seguinte para, em casas junto à estrada, situadas do outro lado dos moinhos com os terrenos de cultivo de permeio.
Nem sempre é possível, pelos vestígios do interior dos moinhos, saber o número exato de mós, outrora, em funcionamento. Alguns, completamente arruinados, apresentam apenas a sua base de construção. Sentia-me compensado. Como um detetive, ia descobrindo, passo a passo, a vida de um moinho como se de um ser humano se tratasse. O seu nome, a sua idade, o número de mós, o destino das farinhas, etc. Quase sempre, apenas se apurava o nome e o número de mós. Havia moinhos que foram vendidos uma ou duas vezes, sendo difícil apurar o seu nome. Mas as pessoas, normalmente, conheciam-no, quase sempre, pelo nome do seu primeiro proprietário, ignorando os subsequentes.
Quando as informações eram escassas, deficientes ou imprecisas, dirigia-me aos cafés e algum tasco, onde era mais fácil, no meio de uma discussão cultural, entre os presentes, chegar a conclusões definitivas. Por vezes, recomendavam-me outras pessoas. Enfim, adorava estre trabalho: descer o rio, contactando e dialogando com as pessoas das suas margens. Agradeço a todos a sua colaboração, mesmo àqueles, que de mau humor, me recebiam com duas pedras na mão.
Os Moinhos
Na Queiva, existiam oito moinhos, em seis edifícios, paralelos uns aos outros, posicionados na vertical em relação ao rio Ferreira.
A partir da fraga do Alto do Castelo:
Moinho Zeca dos Vales – duas mós. O único coberto com soletos. Possuía uma mó aplicada há 25 anos (Notável!). Penado com vinte penas.
Moinho Neca Amaro – quatro mós, telha nacional.
Moinho desconhecido. Destruído na cheia de 1909. Este moinho, não estava alinhado em relação aos outros e penetrava mais no rio Ferreira. Isolado, não suportou o impacto das águas e desapareceu.
Moinho de Consortes (lavradores), uma mó, telha nacional.
Moinho Laurinda do Roque – quatro mós, telha nacional.
Moinho Laurinda do Roque – quatro mós, telha nacional.
Moinho da Galocha – quatro mós, telha nacional.
Moinho da Galocha – duas mós, telha nacional.
Galocha não é nome de moinho, mas sim uma característica. É um moinho que recebe e aproveita as águas provenientes de outro moinho, após ter acionados as suas mós. Ao longo do tempo, este moinho, sem águas próprias, sem açude e levada, acabou por ser assim batizado. Apagando o seu verdadeiro nome.
Gostaria de esclarecer, que embora não haja uma definição clara sobre a classificação de moinhos e azenhas. É correntemente aceite, que as azenhas são moinhos de roda vertical.
Outra curiosidade. No rio Ferreira, todos os moinhos que detetei, com telhado, eram de duas águas, com algerozes. Somente um era de quatro águas.
Sobre a Queiva, e a geologia do lugar, o nosso incontornável padre Joaquim, no seu livro: A Vila de Valongo – Padre Joaquim Alves Lopes Reis – 1904 – pág. 58, comenta:
A esta antiga idade também remonta o corte que na Serra do Raio foi feito para dar passagem às águas do rio Ferreira que, cobrindo S. Martinho, formavam um grande lago que transbordaria pelo Chão do Guizo para Recarei e rio Sousa. É um facto este que não conta a história, mas a que se referem vários autores e dá a conhecer a simples inspeção do terreno por estes sítios. (1)
(1) Antiguidades do Porto por Simão Rodrigues Ferreira
A Serra do Raio é a Serra de Pias. “A esta antiga idade” considera-se, muito antes dos romanos, ou seja, no tempo dos Celtas e dos Lusitanos, que segundo o texto, também teriam explorado as minas de Santa Justa.
Aqui está um bom desafio para, historiadores, arqueólogos e geólogos.
“Ressuscitar” os moinhos da Queiva é um dever de cidadania. Retirá-los do anonimato, do esquecimento e da indiferença, uma missão. São símbolos da cultura do pão, dos biscoitos e da regueifa de Valongo. Dominaram técnicas e saberes ancestrais e concentraram, outrora, uma diversidade de relações económicas e sociais na comunidade.
Estes moinhos de água, de rodízio fixo à péla, conjuntamente com os moinhos do Cuco, do outro lado do promontório, (Fragas do Alto do Castelo) representavam a maior aglomeração de mós em laboração no rio Ferreira. Cerca de 1/3 das mós, a moer cereais, localizavam-se neste pequeno trecho, acidentado do rio.
Nas fotos, são visíveis, ainda com nitidez, nas águas efervescentes do rio, os açudes para o desvio das águas para as levadas dos moinhos, construídos no maciço rochoso.
Na margem direita do rio Ferreira, a duas centenas de metros, aproximadamente, a montante da Queiva, existia um moinho desativado: Moinho da Lena. Um belo exemplar, datado de 1802 e dispondo de quatro mós. Construído em xisto, coberto de telha nacional, com algeroz. A sua estrutura está dotada de dois magníficos arcos graníticos, que emolduram os seus caboucos. Um requinte. Atualmente, é uma casa de habitação.
Este simples trabalho, pretende apenas evitar que estes moinhos se apaguem da nossa memória coletiva. Eles fizeram parte de um florescente pólo de desenvolvimento de Valongo.
A qualidade das farinhas moídas nestes moinhos, contribuíram para dar a conhecer às gentes das redondezas, nomeadamente à cidade do Porto, o excelente aroma e sabor do nosso pão, biscoitos e regueifa, confecionados pelas mãos laboriosas das nossas padeiras e padeiros.
A decadência dos moinhos começou na segunda metade do século XIX, com o aparecimento das moagens a vapor. Mas o golpe fatal, foi dado com a entrada em funcionamento dos moinhos elétricos. Os moinhos ainda suportaram a concorrência do vapor, mas a eletricidade, (anos vinte) provocou o seu encerramento, paulatino mas irreversível.
Se não conhece a Queiva, aproveite para um passeio. A pé, ou de carro (deixe-o ao fundo da Rua da Azenha). Visite-a acompanhado, e desfrute da paz e da tranquilidade do espaço. A Queiva, é um monumento à natureza.
Foto: Joaquim Marques (Arquivo)