O folar ou uma tradição de Valongo

Oferecer uma regueifa aos afilhados no dia de Páscoa.

Em Valongo, como uma herança cultural, era, e ainda é, uma tradição, oferecer no dia de Páscoa, como folar, uma regueifa.

No Domingo de Ramos, anterior ao Domingo de Páscoa, os afilhados, oferecem aos seus padrinhos, um ramo abençoado pelo sacerdote, na missa desse dia. Outros, oferecem simplesmente, um ramo de flores ou apenas uma flor. Em retribuição, os padrinhos oferecem-lhes de presente, no Dia de Páscoa, o folar.

Desde o primeiro ano, ou seja, desde o primeiro folar da Páscoa, que assumimos para com a nossa afilhada, um comportamento de respeito pelos valores tradicionais e culturais de Valongo, inseridos no “modus vivendi” dos nossos antepassados. A nossa postura, para com esses valores pretende ser um investimento na preservação da nossa memória passada e coletiva, oferecendo-lhe, como presente: a tradicional regueifa, um ex-libris de Valongo.

Assim, anualmente, no domingo de Páscoa pelo meio-dia, como um ritual, a nossa afilhada, acompanhada de seus pais visita-nos, para receber o seu folar: a insubstituível e inevitável regueifa de Valongo, com a particularidade de ter o seu nome gravado na própria massa da regueifa.

Como complemento do folar (regueifa) oferecemos-lhe um outro presente.

O cerimonial, apenas termina com uma sessão fotográfica, envolvendo a família.

A tradição inicia-se, como é óbvio, no domingo de ramos, anterior ao domingo de Páscoa. A nossa afilhada, na companhia dos seus progenitores, entrega-nos o seu ramo. Ao longo dos anos e apesar da sua maioridade, seus pais, sempre a acompanham. São pessoas interessadas em manter os nossos valores tradicionais.

Sempre que consultamos, o álbum de fotografias, deparamos com as fotos batidas, ao longo dos seus 26 anos de idade.

Daí a ideia de elaborarmos um pequeno livro, subordinado a este tema, em homenagem à nossa afilhada. As fotos retratam, fielmente, ao longo dos anos, a evolução do seu crescimento natural e humano, intrinsecamente relacionado com a sua estatura e características fisionómicas, que formaram a sua individualidade.

Uma publicação de apenas meia dúzia de exemplares, atendendo ao seu âmbito, estritamente familiar. No entanto, este trabalho envolveu, indubitavelmente, aspetos do nosso rico património histórico-cultural, que urge preservar e manter. Infelizmente, esta tradição, carregada de memórias, encontra-se em declínio.

Não se trata de uma história de ficção, mas sim de uma retrospetiva de acontecimentos reais, circunscritos à época da Páscoa. O objeto da sua narrativa é o de motivar e incentivar os valonguenses em recuperar uma tradição que está em risco de desaparecer.

A regueifa é confecionada na Padaria do Susão, uma padaria procurada ainda hoje, por alguns clientes fiéis, das redondezas, que não prescindem, ao domingo, à sua mesa, do sabor da tradicional regueifa. Quanto às encomendas das regueifas pela Páscoa, destinadas ao folar, estão a decair ao longo dos anos. Isto é, a tradição encontra-se em vias de extinção. Sobrevive ainda graças à fidelidade de alguns padrinhos, que resistem à evolução dos tempos, mantendo este símbolo, parte integrante da identidade cultural de Valongo. Salienta-se que a regueifa tradicional, considerada como folar, está a ser substituída pela regueifa doce.

Dialoguei com pessoas de idade, que recordaram com saudade, o dia de Páscoa, no auge desta tradição: “ – Por todo o Valongo, incluindo a nossa aldeia, viam-se, pelas ruas diversas crianças, carregando ao ombro, vaidosamente, com dificuldade, as suas regueifas. Algumas auxiliadas pelos seus familiares. “

Nesses tempos, dependendo da bolsa dos padrinhos, os afilhados, para além da regueifa, traziam ainda outros presentes adicionais, como um simples pacote de amêndoas, cujo miolo era de amendoim. Outros padrinhos ainda, sem posses, ofereciam apenas um pacote de amêndoas com o tal miolo, em plena rua, evitando assim, a deslocação dos afilhados a casa. Havia ainda quem nada oferecesse, dadas as suas carências económicas. Algumas famílias, mais abastadas, evitavam a regueifa como folar, dada a sua associação às necessidades alimentares desses tempos, optando por outros presentes mais significativos.

Não nos devemos esquecer, de que o pão que as classes menos favorecidas, se alimentava, era confecionado de milho e centeio (boroa).

Enquanto alguns padrinhos (poucos) continuam a manter a tradição deste símbolo emblemático de Valongo, a regueifa como folar, até à idade do casamento dos seus afilhados. Outros, consideram o fim do folar, quando estes atingem a maioridade. 

Conheço pessoalmente, dois habitantes da aldeia do Susão/Valongo, que até ao casamento, receberam o seu folar. Um contraiu matrimónio com 31 anos de idade e o outro com 30 anos. Um deles comentou: “ – Tenho ainda uma foto, da última vez que recebi a regueifa do meu folar!”

A regueifa do folar da Páscoa, é adornada com “figuras” em alto-relevo com flores, espigas…

Na padaria (Domingo de Páscoa) apinhada de gente, ao recebermos a regueifa, esta tem de ser manuseada com muita delicadeza, atendendo ao seu peso e temperatura (quando está quente). Nos primeiros anos, encomendávamos regueifas de 5 e 6 quilos, mas desfaziam-se pelo caminho. Optamos por uma de 4 quilos. Acima deste peso há o risco de se desmembrar. Mesmo assim, deve levar-se já fria.

Anualmente, no dia de Páscoa, assisto e fotografo a saída do tradicional compasso, (indissociável desta quadra festiva) na Capela Nova do Susão/Valongo. É uma explosão de cor e alegria festiva, por entre os sons do repicar dos sinos no campanário da capela, das campainhas das diversas cruzes e do troar dos foguetes. São vários os compassos ou cruzes, que de forma organizada percorrem esta aldeia, pelos lugares, previamente definidos. No fim da visita pascal, os compassos (as cruzes), após o meio-dia, recolhem à Capela. Realiza-se então o tradicional almoço-convívio entre todos os intervenientes. Por razões de economia (obras de ampliação da capela) não se realiza esta confraternização.

No hall da Capela Nova, é normal afixarem num quadro, as listas, com a indicação das zonas e itinerários a percorrer, por cada compasso. São uma dezena os compassos (cruzes), mas apenas um deles leva padre. Os restantes são formados por leigos.   

Visitam apenas as casas cujas entradas estão enfeitadas com verdes. A aldeia sobressalta-se, para conhecer, antecipadamente, a hora da passagem do compasso. Receosa de alguma alteração, do percurso e das horas, relativamente ao ano anterior. A aldeia cresceu!

O compasso transporta o crucifixo, e leva às casas dos paroquianos a “boa nova” e a “bênção pascal”. As pessoas da casa beijam a cruz de Cristo, e o chefe de família, entrega a um dos elementos, um envelope contendo um donativo pecuniário destinado à paróquia.

Infelizmente, o compasso já não tem o brilho religioso e a autenticidade de outros tempos. Saliento entretanto, a tenacidade e a boa vontade de muitos, para que a tradição religiosa se mantenha.

Leia-se um enxerto do livro a Vila de Valongo, do Padre Joaquim Alves Lopes Reis – 1904: (…) Por ocasião da visita pascal a que se chama compasso, a não ser que haja de obsequiar-se o pároco, que é recebido na melhor sala, onde se lhe servem biscoitos, doces e vinho, usa-se colocar dentro da porta uma cadeira enfeitada com uma toalha, flores e alecrim, tendo no centro um prato de louça ou vidro com uma moeda de prata ou ouro. (…)

Enquanto, na padaria, recolhia elementos para este trabalho, uma cliente de idade, comentou à colação: “ – Hoje, eles (os afilhados) até têm vergonha de levar a regueifa pela rua! ”

A ideia deste trabalho, foi tentar, que os valonguenses, reflitam sobre alguns dos nossos usos, costumes e tradições, que se vão extinguindo. É nosso dever mantê-las como uma herança para os vindouros. Não podemos deixar morrer a tradição da regueifa, como folar.

Uma pena que as tradições e os costumes, não obedeçam, como na Idade Média, ao Direito Consuetudinário: o costume faz a lei!

Texto e fotos de Joaquim Manuel Pereira Marques
27.03.2020

PUB