Tudo começou na típica aldeia do Susão, em Valongo. Mais concretamente, no antigo Lugar da Escola, que a evolução toponímica alterou para Rua da Escola e hoje Rua André Gaspar no n.º 101.
O casal nascido e criado em Valongo: António Abreu Costa (Sr. António) e Maria Nunes Coelho (Senhora Maria), instalou-se na rua acima referida, em 24.03.1963, em casa alugada, com habitação no 1º. Andar e padaria no rés-do-chão. Aproveitaram as instalações desta divisão, com forno a lenha, de uma antiga padaria que confecionara somente broa.
Apostaram numa oportunidade de negócio, e, simultaneamente, no seu objetivo de vida, que prosperou ao longo do tempo, após denodados esforços de ambos, e de intenso e árduo trabalho. A indústria da panificação era, na época, uma atividade em transição, da força de braços, ainda utilizada, para o apoio tecnológico. O casal, não deixou de, progressivamente, dotar a padaria, de alguns equipamentos essenciais. Uma curiosidade, o abastecimento de água, ao domicílio, praticamente inexistente no Susão, obrigava a trazer a água em baldes de um poço vizinho.
Foi uma visão comercial, da qual a aldeia também beneficiou. Em Valongo, terra de pão, não faltavam padarias. O pão, vinha desta vila, hoje cidade, acomodado em canastras à cabeça de algumas mulheres, que o distribuíam pelas casas da aldeia, às primeiras horas da manhã. Assim, a aldeia do Susão optou por se abastecer de pão na “sua” padaria, e, paulatinamente, este deixou de vir de Valongo.
No entanto, em muitas habitações, as famílias continuavam a confecionar a sua fornada semanal, – broa de milho – no seu forno individual. Alguns habitantes, sem forno, serviam-se, graciosamente, por cedência, do forno do vizinho. Um ou outro elemento da população, confecionava, diariamente, fornadas de broa, que distribuía por algumas casas, obtendo algum lucro.
Com o aparecimento da padaria do Susão, as casas deixaram de estar dependentes do seu forno e da sua fornada semanal. Optando pela sua destruição, ampliaram assim, o espaço das suas habitações, face à sua exiguidade.
A padaria foi das primeiras, na aldeia, a ter telefone, uma mais-valia, disponibilizando-o, solidariamente, às pessoas, em casos de maior necessidade.
A simpatia do casal, foi fundamental para a sua integração nesta comunidade rural, muito sui generis. Os clientes, surgiram cada vez mais e o volume de negócios foi ampliado, forçando à admissão de pessoal, passando a padaria a distribuir o pão ao domicílio, pelas freguesias de Valongo, Ermesinde e Alfena. Não sem dificuldades, pois na altura, não possuíam a frota de viaturas atual, destinada à distribuição do pão, nos dias de hoje.
O Sr. António, encarregava-se da produção e da distribuição. A senhora Maria, ocupava-se do atendimento do público ao balcão. Ainda bem, porque ela tornou-se, na imagem de marca da padaria. Revelou-se ao longo dos tempos, uma mestra das relações públicas. Ela transformou esta ciência, numa mera arte de comunicação. “Enfrentando,” diariamente, um público heterogéneo, com o seu trato afável, acolhedor e sobretudo, consensual. Jamais se ouviu da boca da senhora Maria, uma palavra obscena.
Para as crianças que, eventualmente, apareciam na padaria, devotava-lhes, sempre, uma especial atenção: um mimo, um pão, um biscoito… Um hábito e uma tradição seguida hoje, pelos seus familiares. O seu receio era que as crianças ougassem. Um dia, por simples cortesia, mandou confecionar um pão do ougado, explicando-me a sua finalidade.
Este pão especial, destinava-se a ser consumido pelas crianças que ougavam, isto é, quando alguma mãe pressentia, que o seu filho estava a definhar, e receosa do seu estado de magreza, encomendava um pão do ougado, na padaria. Este pão, era um simples molete, achatado. Antes de ir ao forno, faziam-se com os dedos, sete pequenos buracos, tantos como os dias da semana, preenchidos com azeite. O pão saído do forno, era dado à criança que o comia. O que sobejasse era dado a um cão. O pão, surtia o efeito desejado, mais, pelos seus aspetos psicológicos do que pelas suas “propriedades terapêuticas”. No entanto, as pessoas acreditavam nos seus benefícios. (Ver foto)
A ênfase aqui consagrada, ao desempenho diário da senhora Maria, deve-se à importância que a padaria representava para esta comunidade. A Padaria do Susão era um ponto de encontro social da aldeia. Às primeiras horas da alvorada; nas horas da saída das fornadas; em determinadas horas coincidentes com as refeições; aos domingos e feriados, especialmente autorizados (mais tarde, diariamente); aos domingos, após a saída da missa; em dias festivos (Natal, Páscoa, Nossa Senhora da Saúde, Casamentos, batizados, comunhões…) a padaria rebentava pelas costuras. Era aqui, neste ambiente, essencialmente feminino – os homens não tinham vez – que nos breves momentos em que aguardavam pela saída da fornada, que as mulheres da aldeia, conviviam, trocando notícias e novidades do que na aldeia se passava. Não raro, surgiam discussões, até pela ordem de chegada e atendimento, ou pela animosidade entre clientes, ou pela bisbilhotice, sempre normal nestes ambientes. Discussões, logo sanadas pela senhora Maria que com uma ligeira elevação de voz, consensual, não dando importância ao assunto, rematava: ” – Vamos lá, não quero aqui discussões. Quem é agora? ” Todos aceitavam a sua intervenção. Era de facto lá, na padaria, que a aldeia girava. Era lá, aproveitando os breves momentos que as mulheres conviviam, trocando informações sobre o seu dia-a-dia, ou falando de trivialidades. Quando um homem aparecia, era imediatamente atendido. Naquela época, a padaria gravitava em torno das mulheres. Estas, não gostavam de partilhar com os homens, as suas conversas.
A aldeia do Susão, era como uma tribo, onde os clãs familiares se cruzavam entre si. Quando um funeral passava por Valongo, a caminho do cemitério, a população identificava, imediatamente, se era proveniente do Susão. Bastava reparar, no numeroso acompanhamento de pessoas que levava.
Também nos ribeiros, em lavadouros improvisados e tanques do Moçona, as mulheres conviviam. Os homens, mantinham também, os seus pontos de encontro. Após a saída do trabalho, à tardinha, e à noite, após o jantar, nas tabernas da aldeia da Maruja, Pisca, Coelhas…em redor das mesas, jogando dominó, cartas, ou simplesmente cavaqueando.
Outra curiosidade. Na padaria, aos domingos, ou em dias festivos, as assadeiras andavam num rodopio, das casas da aldeia para o forno a lenha da padaria. Hoje, em número muito reduzido, ainda se verifica. Antigamente, eram às dezenas. Uma preocupação acrescida para os padeiros que tinham que virar as carnes. O Sr. António, chegava a acender o forno, de propósito, para as assadeiras.
Em 1974, a Padaria do Susão transferiu-se para a Rua Padre Miguel Paupério do Vale, 36/40/48, passando a ocupar um edifício próprio, muito mais amplo, adaptado a padaria e habitação da família, mas continuando a manter a sua característica tradicional e familiar. Por mera curiosidade. O padre Miguel, antigo padre da aldeia, era uma presença habitual da casa, com quem a família privava.
A senhora Maria, tornou-se, na matriarca, por excelência, do seu clã. Marido, cinco filhos, vários netos, noras, genros e afins. Hoje, como no passado, os filhos, bem como outros membros do clã, ao lado dos seus empregados, trabalham, como polivalentes, assegurando uma produção diária de milhares de pães (moletes), regueifas, broa, tostas, e outros produtos congéneres, uma garantia da sua qualidade. Sem esquecer, o pão de ló e o bolo rei, bastante apreciados devido ao seu sabor. Alguns clientes, de fora da cidade, surgem, semanalmente, na padaria, para adquirirem a tradicional regueifa, como um ritual.
Para a distribuição, ao domicílio, dos seus produtos, a empresa, dispõe de uma frota de viaturas de vários tipos, que saem e entram a diversas horas do dia, num constante vaivém, percorrendo as freguesias de Valongo, Ermesinde, Alfena…
O Sr. António, ainda há pouco tempo em funções, afastou-se da atividade, delegando nos seus filhos, mas mantendo a supervisão da empresa.
A senhora Maria, desenvolveu, ela própria, a sua capacidade inata de comunicar e dialogar com as pessoas, ao longo duma vida.
A população do Susão ainda hoje comenta, recordando, com saudade, a senhora Maria: “ – Era uma boa senhora. Amiga de fazer bem!” Outros, ainda: “ – Era uma santa. Fez bem a muita gente!”
De facto, algumas pessoas referem o seu espírito altruísta. Discretamente, auxiliava algumas pessoas, não só com os seus conselhos mas também com o seu apoio financeiro. A Senhora Maria era uma benemérita.
Faleceu em 2013 com 77 anos de idade.
Ainda hoje, quando entramos na Padaria do Susão, parece-nos ouvir a sua voz, calma e acolhedora. Envergando a sua bata branca, irradiando simpatia, atendendo os clientes, do outro lado do balcão. Por vezes, elevando a voz, para admoestar, as clientes, quando as conversas atingiam o auge e derivavam para as discussões acaloradas. Sem ferir, liderava, mediava e pacificava o ambiente: “ – Vamos lá. Não quero aqui discussões. Quem é agora?!” Tudo dito com o seu à vontade natural, que desarmava qualquer cliente. A Senhora Maria era uma senhora de consensos!
A Senhora Maria não está esquecida. Ela faz parte integrante do património de memórias desta aldeia e desta cidade.aEsclarecimento: o termo mulheres, não deve ser encarado como uma palavra discriminatória.
Texto e Fotos de Joaquim Manuel Pereira Marques – 2018.05.13